quarta-feira, 10 de outubro de 2018



Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher

            “Violência de gênero, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que privilegia o masculino”: assim discorre Heleieth Saffioti em sua obra “Gênero, patriarcado e violência” (2011, p. 81).
            Através do trecho narrado, é possível iniciar uma discussão em torno da bandeira levantada no dia 10 de outubro de cada ano, pela luta nacional contra a violência à mulher, perpassando por questões socialmente enraizadas que obrigam a militância feminista a atuar não somente no pós-violência – quando do acolhimento e orientação à vítima –, mas também na prevenção, quando da educação social e dos estudos de teorias historicamente acumuladas sobre opressões e explorações de gênero e de classe.
            Em breve síntese, a supramencionada data surgiu no Brasil em 1980, por um grupo de paulistanas cujos enfrentamentos geraram significativos frutos como a sanção da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – e que, atualmente, possui como objetivo principal o fomento à utilização dos serviços da Central de Atendimento à Mulher – o disk 180 – mantida pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), pelas mulheres em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva.
            Com base no até aqui exposto, nota-se que é possível discorrer sobre a violência contra a mulher através de dois simultâneos e importantes olhares: o primeiro, pela compreensão dos direitos das mulheres e o conhecimento quanto aos mecanismos legislativos e judiciais existentes; e, o segundo, sobre o instante que antecede as situações de violência, ou seja, a análise histórica e teórica sobre a estrutura social que garante e legitima a submissão do gênero feminino ao masculino.
            Iniciando pela hipótese de concreta violência, é necessário que nós, militantes, conheçamos a Lei Maria da Penha – o que não nos isenta de tecer críticas sobre suas limitações dentro da superestrutura burguesa – e tenhamos domínio de suas previsões, orientações e diretrizes. Tal destreza possibilita que instrumentalizemos cada vez mais mulheres que possam estar, ou que têm contato com quem esteja, em situação de agressão. Informar-se sobre tais procedimentos pode, literalmente, salvar vidas.
            Os ditames da Lei Maria da Penha aplicam-se, tão somente, em violências acometidas em ambiente doméstico – entende-se por ambiente doméstico o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas (exemplo: república de estudantes, local de trabalho ou de estudo) –; familiar – entende-se por ambiente familiar a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (exemplo: os pais, ou irmãos, ou primos, ou cunhados, ou tios, etc.) –; e, em relações íntimas de afeto – na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (exemplo: cônjuge, companheiro em união estável, namorado, afeto esporádico como “ficantes”, etc.). Quanto ao todo expresso, frisa-se a desnecessidade de laço sanguíneo quando da violência familiar; e, nas relações íntimas, a irrelevância de o relacionamento afetivo ainda perdurar no instante da denúncia e, muito menos, da necessidade de coabitação. Tais informações, quando não sabidas, afastam as mulheres dos direitos previstos em lei e desestimulam, até mesmo, a reivindicação de medidas protetivas.
            As violências, por sua vez, estão presentes em cinco extensões da integridade humana: física (chutes, puxões de cabelo, socos, tapas); moral (difamar, caluniar ou injuriar); psicológica (ameaçar, chantagear, humilhar, isolar, perseguir, xingar, manipular); sexual (estuprar, forçar ao aborto, exigir maternidade); e, patrimonial (esconder instrumentos de trabalho ou documentos pessoais, quebrar objetos, restringir acesso ao dinheiro).
            Superadas as considerações acima, devemos nos atentar ao fato de que a Lei Maria da Penha, prevê, também, como o Poder Público deve dispor de medidas integradas de prevenção, a forma como as autoridades policiais devem proceder quando invocadas, da assistência judiciária e do atendimento de equipe multidisciplinar. Inviável discorrer sobre cada um destes pontos nesta oportunidade, entretanto, essencial que saibamos reivindicar cada uma destas disposições que, quando efetivadas, garantem ainda mais a segurança e a integridade física e moral da violentada.
            Antes de divagar sobre as medidas protetivas, é necessário pontuar que as mulheres protegidas pela Lei nº 11.340/2006 não são só as cisgênero, mas em equivalência de direitos, a mulher transgênero e a travesti. Tal extensão de direitos, pacificada somente em 2017, é imprescindível para a efetivação da justiça, uma vez que as mulheres trans e as travestis são, conforme nos mostram os índices, as maiores vítimas de violência, atentados e homicídios. Negar esse direito seria aprofundar ainda mais o abismo social já existente, legalizar a discriminação e cometer um erro histórico irreparável.
            Quanto às medidas, cabe dividi-las em dois grupos: a-) as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor; e, b-) as medidas protetivas de urgência concedidas à ofendida. Ao primeiro grupo pertencem as medidas concedidas pelo(a) Juiz(a) responsável com teor destinado ao agressor. Podem ser elas: suspensão ou restrição do porte de arma (em casos onde o agressor é policial militar, por exemplo), afastamento do local de convívio com a vítima (exemplo: afastamento do lar), proibição de contato com familiares da agredida (incluindo filhos menores em comum), e, até mesmo, prestação de alimentos (em casos onde a agredida ou seus dependentes dependam financeiramente do acusado). Já as medidas que são destinadas à mulher em situação de violência, destacamos: seu encaminhamento e de seus dependentes a programas sociais de proteção (exemplo: casa lar, casa abrigo, casa de passagem), separação de corpos, restituição de bens que possam ter sido subtraídos pelo acusado e suspensão de procurações e direitos que a vítima possa ter conferido ao agressor.
            A finalizar este primeiro olhar sobre a violência, é válido registrar a importância de atuação junto ao CREAS da cidade, cujas providências podem ser ainda mais fortalecidas. É indispensável que as várias hipóteses de medidas de proteção também sejam difundidas socialmente entre nós e nossos pares, uma vez que, via de regra, a medida de praxe concedida pelo judiciário é a de distanciamento, enquanto, muitas vezes, a agredida restaria mais protegida se reivindicadas as medidas de suspensão de porte de armas, prestação de alimentos ou restituição de bens, por exemplo – ainda mais quando consideradas as estatísticas que revelam uma violência mais devastadora às mulheres da classe trabalhadora, ocupantes de categorias de desemprego ou de subtrabalhos mal remunerados e precarizados, o que as tornam totalmente dependentes do salário de uma figura masculina socialmente melhor remunerada.
            Entretanto, não nos cabe apenas a atuação reparadora quando concretizada a violência. Fundamental uma insistente discussão sobre gênero e classe para que avancemos socialmente no debate, diminuindo, cada vez mais, os índices de agressão e de feminicídio. Pra isso, projetos de lei como o “Escola sem Partido” devem ser derrubados, onde, no lugar, devemos ocupar propostas de educação sexual, grupos de estudo e de debate sobre estereótipos de gênero e sobre opressões e explorações. É crucial desmitificarmos, em todos os espaços e a todo tempo, o fantasma que ronda os debates que têm potencial de arruinar essa sociedade capitalista falida e seus tentáculos do machismo, do racismo, da LGBTIfobia, etc.
            Nesse sentido, quanto à ruptura do todo posto e o objeto de nossa luta organicamente travada diariamente:

É imprescindível o reforço permanente da dimensão histórica da dominação masculina para que se compreenda e se dimensione adequadamente o patriarcado. (...) A dominação-exploração constitui um único fenômeno, apresentando duas faces. Desta sorte, a base econômica do patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em sua marginalização de importantes papeis econômicos e político-deliberativo, mas também no controle de sua sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva. Seja para induzir as mulheres a ter grande número de filhos, seja para convencê-las a controlar a quantidade de nascimentos e o espaço de tempo entre os filhos, o controle está sempre em mãos masculinas, embora elementos femininos possam intermediar e mesmo implementar estes projetos. (...) Não basta ampliar o campo de atuação das mulheres. Em outras palavras, não basta que uma parte das mulheres ocupe posições econômicas, políticas, religiosas, etc., tradicionalmente reservadas aos homens. Como já se afirmou, qualquer que seja a profundidade da dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens, a natureza do patriarcado continua a mesma. A contradição não encontra solução neste regime. Ela admite a superação, o que exige transformações radicais no sentido da preservação das diferenças e da eliminação das desigualdades, pelas quais é responsável a sociedade (SAFFIOTI, 2011, p. 105-106).

            Para isso, nós do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro não nos iludimos com as esferas legislativa e judiciária, mesmo reconhecendo algumas contribuições como válidas e essenciais para a luta e a instrumentalização cotidiana. Denunciamos diariamente as violências de classe e de gênero, incluindo as acometidas pelo Estado quando negligente e omisso às demandas do movimento feminista. Reafirmamos a necessidade de fazermos resgates teóricos que nos contemplam enquanto mulheres da classe trabalhadora, a fim de avançarmos no debate e erradicarmos, de vez, junto à ruptura radical da sociedade capitalista, a forma mais primária de submissão feminina: a violência. Para este dia 10 de outubro, defendemos, também, o fim da Polícia Militar, a ampliação da rede de atendimento às mulheres em situação de violência, bem como a reestruturação desmilitarizada das Delegacias de Defesa da Mulher.

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