quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O SISTEMA PUNITIVISTA

Mercedes Lima *


“... o direito, enquanto conjunto de normas, não é nada além de uma abstração sem vida” ................................................................................. 

Na Alemanha antiga, o conceito acabado de norma externamente dada era muito estranho. Nenhum gênero de compilação de regras, estava, para os jurados leigos, ligado às leis, mas era um meio que os ajudava e fundamentar seu próprio juízo.” (Pachukanis)


No capitalismo o sistema penal é um dos mais poderosos .instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da exclusão, características da formação social capitalista. Mas, muitas vezes, mesmo na esquerda, numa cortina de fumaça, a palavra justiça é usada como se o sistema criminal representasse mesmo o real significado dessa palavra. Cada época histórica vai definir, caracterizar/tipificar, estabelecer formas de punição do indivíduo sempre associadas às relações de produção. O sistema penal atual revela ser uma manifestação de poder de classe do Estado capitalista dirigida prioritariamente aos excluídos, aos desprovidos de poder político. 

A punição de autores de condutas socialmente negativas, especialmente a prisional, gera na sociedade burguesa um sentimento de satisfação e mesmo de alívio já que identifica o inimigo, o mau, o perigoso, e, assim, desvia-se do caminho pela busca de soluções muito mais eficazes, estruturantes. E, tal por que? Porque a punição pela punição não identifica as origens e razões dos comportamentos socialmente negativos, ou seja, não dá visibilidade às fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza, encoberta os desvios que alimentam tais comportamentos. 

Não havendo essa compreensão da questão ocorre então a adesão à ideologia da repressão, da lei e da ordem, um combate cego à criminalidade, aliás, muito alimentado pela mídia que trabalha com os sentimentos de insegurança e o medo coletivos e difusos na sociedade provocados por uma situação econômica e social discriminatórias, sem solidariedade, sem expectativas futuras, etc. Esconde-se assim os verdadeiro vilão que é a situação de uma sociedade desigual, com exploração dos trabalhadores, racista, homofóbica. 

No punitivismo temos um Direito Penal que não trata o delito a partir de seu contexto histórico e político, mas como um problema meramente individual, o que, despolitiza o conflito e, conforme já dito, oculta as razões estruturais que o provoca ou o condiciona. 

Assim, o conflito tem pouca probabilidade de ser resolvido pois a punição individual não pode solucionar questões sociais, e os fatores que o condicionou continuam a existir, e, nesse sentido, a pena contribui para a reprodução e o aumento da criminalidade. Exemplificando, alguém fruto de um lar onde imperou a violência pode ser violento. A prisão, por si só, não resolverá o conflito que ficou, lá atrás, quando o agressor quando criança apanhava e via sua mãe apanhar cotidianamente. O sistema penal no capitalismo é um reprodutor e, simultaneamente, produtor das relações opressivas que permeiam a realidade social. 

Por um lado, estamos numa sociedade capitalista e, nessa situação, é difícil a aplicação pura do sistema abolicionista, a saber, a não intervenção do sistema penal em questões sociais e, por outro lado, não se pode admitir a aplicação pura e simples, em maior ou menor grau de intensidade, do direito penal nas referidas questões sociais. 

Portanto, como se percebe, é complexa a relação entre o sistema penal, enquanto um instrumento de dominação, e as opressões sofridas pelos mais pobres, pela discriminação em razão de gênero, raça e orientação sexual ou pelas profundas desigualdades econômicas. Embora saibamos que o simples punitivismo não resolve o conflito, será que podemos, por exemplo, dizer a uma mulher brutalizada pela violência doméstica que o agressor não seja punido na área criminal? Não dá para ignorar, a existência de uma sólida base material : a)- os setores mais vulneráveis, são concretamente os mais atingidos, nos processos de criminalização e vitimização : sofrem reais danos, diretos e indiretos. (ZAFFARONI, 2012, p. 327); b)- Uma violência cometida hoje, pode ser repetida amanhã ( bater novamente na mulher e até levá-la à morte); c)- impossível ignorar a quantidade de mulheres que morrem diariamente no nosso país (Brasi). 

A mulher trabalhadora atingida pela violência, tem introjetada e incorporada como sua a ideia do justo, da pena de prisão como aquela referente à justiça, à ordem e à norma social que pode controlar. Mas, na verdade, essa norma punitiva é uma imposição oriunda de uma ordem social que não é a sua, e sim do Estado burguês, um aparato de regulamentação social, externa e coercitiva portanto fora de seu controle. Políticas públicas voltadas para a educação, como forma de aprendizagem, é algo que não é histórico para os trabalhadores que tem como exemplo, em suas vidas, no cotidiano de seus dias, a marca da repressão e violência de Estado e, portanto, tais políticas, porque distantes de seu mundo nem sempre são de fácil compreensão e apreensão pela classe trabalhadora. 

Assim, numa sociedade historicamente punitivista é difícil exigir que as mulheres vítimas de violência e mesmo o próprio Movimento Feminista, os negros, abandonem espontaneamente a pauta criminalizadora. É difícil, reconhecemos,ter uma postura, digamos idealista, diante de um corpo e uma mente brutalmente espancados e humilhados. Nesse sentido, não é possível pura e simplesmente apontar um dedo acusador às mulheres quando essas apontaram para a existência do feminicídio ( crime tipificado como tal quando se matam mulheres por serem mulheres) já que no país são assassinadas muitas mulheres ( diariamente) por seus parceiros. 

A criminalização tem efeitos simbólicos para os oprimidos e explorados ( em geral com direitos e oportunidades negadas) : é bom ser reconhecido como vítima pelo direito penal, é uma forma de visibilidade, enfim, punir dá a sensação de que foi feita justiça, o que, sabemos, é bastante questionável. 

Muitos juristas brasileiros, por exemplo, dizem que razão assiste aos que dizem não ser possível um abolicionismo total e imediato, assim como não é possível defender o sistema brasileiro com um caráter punitivista que não soluciona a questão da violência contra a mulher ( BATISTA, Nilo) 

O Movimento Feminista demonstrou, por ocasião de sua luta pela chamada Lei Maria da Penha, em um impressionante salto qualitativo para a ocasião, que às mulheres não interessava apenas a criminalização dos agressores, mas o fim da violência sofrida e o reconhecimento de seus direitos através de outros mecanismos que não a punição. Assim, a Lei Maria da Penha tem artigos dispondo sobre : a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça e etnia, respeito à imagem da mulher nos meios de comunicações sociais, capacitação dos órgãos públicos, promoção de programas educacionais que divulguem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero, raça e etnia, ou seja, formas de prevenção à violência e mesmo de resguardo de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, opressão, ou seja, o estabelecimento de punições mas apontando para outra solução que não essa. 

Verdade que o Movimento pediu as Delegacias de Polícia da Mulher, mas também exigiu a criação dos chamados Centros de Referência nos bairros mais periféricos, com um caráter mais educativo de encaminhamentos, orientação, atividades educacionais e culturais voltadas principalmente na luta pela não violência contra as mulheres. Entretanto, a cultura punitivista foi mais forte e a ideia desses Centros educativos foram abandonadas, esvaziados os serviços ( sociais, educativos, psicológicos ) enfim, sem apoio governamental, restando apenas a ideia da punição até com prisão. 

O que fazer? Partindo do princípio de que o senso comum é punitivista ou levado a assim ser, dialogar com o Movimento, nos espaços de organização coletiva, com as trabalhadoras, com a militância, estudar formas de conscientização, com estudos, discussões, reflexões, construção de alternativas ( viáveis) para a solução de conflitos, num processo de conhecimento e convencimento, direcionados para a retirada da fumaça que permeia a questão . Nos espaços internos de militância no campo da esquerda, particularmente a revolucionária, levar a cultura dos procedimentos de crítica e autocrítica sinceras ( por vezes esquecidos) que podem contribuir para evitar os processos disciplinares penosos. 

Temos que, intervindo na realidade social, realizar esforços, na expectativa de superação do capitalismo e seu sistema penal, entendido como um mecanismo de manutenção e reprodução das desigualdades intrínsecas ao sistema capitalista, para através, de propostas de aplicação de uma criminologia cautelar e preventiva (ZAFFARONI, 2012), levando-se em conta, evidentemente, os danos reais, diretos e indiretos causados pelos delitos às vítimas. 

Aqui nossa preocupação principal é com a questão do punitivismo no que se refere à violência contra a mulher, mas, a violência estrutural do capital nos obriga a ver a necessidade da transversalidade nas lutas dos explorados. O jurista Alessandro Baratta ( BARATTA, 2011) faz uma distinção programática entre política penal e política criminal, a primeira referente à função punitiva do Estado ( lei penal e sua aplicação), e a segunda entendida como política de transformação social e institucional, essa sim a estratégia correta já que o Direito Penal é o instrumento inadequado porque baseada na punição sem enfrentar as razões do conflito. 

A moral, o direito e o Estado no capitalismo têm formas da sociedade burguesa. Um novo tipo de relação demanda a criação e a consolidação de uma nova base material, econômica.( PACHUKANIS, 2017), uma outra sociabilidade, uma outra sociedade, e, para nós particularmente, a sociedade socialista. 


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SUGAMOSTO, Vitor, et al . Esquerda punitiva e criminologia crítica: um diálogo possível?. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 134. ano 25. p. 411-435. São Paulo: Ed. RT, ago. 2017.

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Editora Revan – ISBN – 978-857106-4157 - Rio de Janeiro, 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La cuestión criminal. Buenos Aires Editora Planeta, 2012.

http://www.matiasbailone.com/dip/ZAFFARONILa%20cuestion%20criminal%20%202da%20edicion%20-%20web.pdf

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 201.

PACHUKANIS, Eviguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Ed. Boitempo. 1ª Edição. São Paulo. 2017.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019



Ressaca

Os cartazes, as bandeiras, a voz rouca, as luzes que iam de amarelo a azul, tudo zunindo.
O copo ainda sujo em sua frente, com resto de cerveja e batom.
Garrafas em cima da mesa.
Diversas. A vontade de pedir mais uma e o riso frouxo.
As memórias, como um rio turvo. A água em seus olhos, que abriram e fecharam com muita força.
De repente, levantou e cantou uma canção que sua avó ensinou:
"Sempre no coração, haja o que houver, a fome de um dia poder, comer a carne dessa mulher. Veja meu patrão como pode ser bom, você trabalharia no sol, e eu tomando banho de mar....".
Subiu na mesa e discursou.
Inflamada.
De relance se viu no caminhão de som, a memória de todos os meninos que habitam dentro dela e são cheios de fome, doçura, e de raiva.
Raiva.
Raiva.
Viver é coisa séria, não é?
Na esquina, um morador em situação de rua gritava alto.
Profecias, ela pensou.
"Luto para viver, vivo para morrer, enquanto minha morte não vem eu vivo de brigar contra o rei..."
Engoliu a seco.
Fosse fazer poesia essa hora diria que não pode existir lucidez nesse mundo. Mas existe.
E dói.
Maria não conseguia enxergar muito bem quem estava à sua frente, mas sentia uma paixão enorme, junto a uma tristeza que a fazia gargalhar.
Tudo turvo.
Quantas, quantas derrotas até uma vitória?
A bebida traz coragem mesmo ou isso nasce encruada na gente?
Sua pele eriçava com o vento, e sentiu desejo. Mas amanhecia e alguém a avisou que precisava tomar café. O bar estava fechando.
"Hoje tem lei seca".
Bateu na mesa, engoliu o café sem açúcar e sumiu virando a esquina.
Viver é tomar partido.
Boa ressaca.

Por Maria Fernanda Portolani

Na foto:  Marielle Franco, sempre viva em todas nós.

Para ler ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=k9-6p11klE0