Dia
Nacional de Luta contra a Violência à Mulher
“Violência
de gênero, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica, não ocorre
aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que privilegia
o masculino”: assim discorre Heleieth Saffioti em sua obra “Gênero, patriarcado
e violência” (2011, p. 81).
Através
do trecho narrado, é possível iniciar uma discussão em torno da bandeira
levantada no dia 10 de outubro de cada ano, pela luta nacional contra a
violência à mulher, perpassando por questões socialmente enraizadas que obrigam
a militância feminista a atuar não somente no pós-violência – quando do acolhimento e orientação à vítima –,
mas também na prevenção, quando da educação social e dos estudos de teorias
historicamente acumuladas sobre opressões e explorações de gênero e de classe.
Em
breve síntese, a supramencionada data surgiu no Brasil em 1980, por um grupo de
paulistanas cujos enfrentamentos geraram significativos frutos como a sanção da
Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha
– e que, atualmente, possui como objetivo principal o fomento à utilização dos
serviços da Central de Atendimento à Mulher – o disk 180 – mantida pela Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República (SPM-PR), pelas mulheres em situação de violência
doméstica, familiar ou afetiva.
Com
base no até aqui exposto, nota-se que é possível discorrer sobre a violência
contra a mulher através de dois simultâneos e importantes olhares: o primeiro,
pela compreensão dos direitos das mulheres e o conhecimento quanto aos
mecanismos legislativos e judiciais existentes; e, o segundo, sobre o instante
que antecede as situações de violência, ou seja, a análise histórica e teórica
sobre a estrutura social que garante e legitima a submissão do gênero feminino
ao masculino.
Iniciando
pela hipótese de concreta violência, é necessário que nós, militantes,
conheçamos a Lei Maria da Penha – o que
não nos isenta de tecer críticas sobre suas limitações dentro da superestrutura
burguesa – e tenhamos domínio de suas previsões, orientações e diretrizes.
Tal destreza possibilita que instrumentalizemos cada vez mais mulheres que
possam estar, ou que têm contato com quem esteja, em situação de agressão.
Informar-se sobre tais procedimentos pode, literalmente, salvar vidas.
Os
ditames da Lei Maria da Penha aplicam-se, tão somente, em violências acometidas
em ambiente doméstico – entende-se por
ambiente doméstico o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo
familiar, inclusive as esporadicamente agregadas (exemplo: república de
estudantes, local de trabalho ou de estudo) –; familiar – entende-se por ambiente familiar a
comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos
por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (exemplo: os pais, ou
irmãos, ou primos, ou cunhados, ou tios, etc.) –; e, em relações íntimas de
afeto – na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (exemplo:
cônjuge, companheiro em união estável, namorado, afeto esporádico como
“ficantes”, etc.). Quanto ao todo expresso, frisa-se a desnecessidade de
laço sanguíneo quando da violência familiar; e, nas relações íntimas, a
irrelevância de o relacionamento afetivo ainda perdurar no instante da denúncia
e, muito menos, da necessidade de coabitação. Tais informações, quando não
sabidas, afastam as mulheres dos direitos previstos em lei e desestimulam, até
mesmo, a reivindicação de medidas protetivas.
As
violências, por sua vez, estão presentes em cinco extensões da integridade
humana: física (chutes, puxões de cabelo, socos, tapas); moral (difamar,
caluniar ou injuriar); psicológica (ameaçar, chantagear, humilhar, isolar,
perseguir, xingar, manipular); sexual (estuprar, forçar ao aborto, exigir
maternidade); e, patrimonial (esconder instrumentos de trabalho ou documentos
pessoais, quebrar objetos, restringir acesso ao dinheiro).
Superadas
as considerações acima, devemos nos atentar ao fato de que a Lei Maria da
Penha, prevê, também, como o Poder Público deve dispor de medidas integradas de
prevenção, a forma como as autoridades policiais devem proceder quando
invocadas, da assistência judiciária e do atendimento de equipe
multidisciplinar. Inviável discorrer sobre cada um destes pontos nesta
oportunidade, entretanto, essencial que saibamos reivindicar cada uma destas
disposições que, quando efetivadas, garantem ainda mais a segurança e a
integridade física e moral da violentada.
Antes
de divagar sobre as medidas protetivas, é necessário pontuar que as mulheres
protegidas pela Lei nº 11.340/2006 não são só as cisgênero, mas em equivalência
de direitos, a mulher transgênero e a travesti. Tal extensão de direitos,
pacificada somente em 2017, é imprescindível para a efetivação da justiça, uma
vez que as mulheres trans e as travestis são, conforme nos mostram os índices,
as maiores vítimas de violência, atentados e homicídios. Negar esse direito
seria aprofundar ainda mais o abismo social já existente, legalizar a
discriminação e cometer um erro histórico irreparável.
Quanto
às medidas, cabe dividi-las em dois grupos: a-)
as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor; e, b-) as medidas protetivas de urgência
concedidas à ofendida. Ao primeiro grupo pertencem as medidas concedidas
pelo(a) Juiz(a) responsável com teor destinado ao agressor. Podem ser elas:
suspensão ou restrição do porte de arma (em casos onde o agressor é policial
militar, por exemplo), afastamento do local de convívio com a vítima (exemplo:
afastamento do lar), proibição de contato com familiares da agredida (incluindo
filhos menores em comum), e, até mesmo, prestação de alimentos (em casos onde a
agredida ou seus dependentes dependam financeiramente do acusado). Já as
medidas que são destinadas à mulher em situação de violência, destacamos: seu
encaminhamento e de seus dependentes a programas sociais de proteção (exemplo:
casa lar, casa abrigo, casa de passagem), separação de corpos, restituição de
bens que possam ter sido subtraídos pelo acusado e suspensão de procurações e
direitos que a vítima possa ter conferido ao agressor.
A
finalizar este primeiro olhar sobre a violência, é válido registrar a
importância de atuação junto ao CREAS da cidade, cujas providências podem ser
ainda mais fortalecidas. É indispensável que as várias hipóteses de medidas de
proteção também sejam difundidas socialmente entre nós e nossos pares, uma vez
que, via de regra, a medida de praxe concedida pelo judiciário é a de distanciamento,
enquanto, muitas vezes, a agredida restaria mais protegida se reivindicadas as
medidas de suspensão de porte de armas, prestação de alimentos ou restituição
de bens, por exemplo – ainda mais quando
consideradas as estatísticas que revelam uma violência mais devastadora às
mulheres da classe trabalhadora, ocupantes de categorias de desemprego ou de
subtrabalhos mal remunerados e precarizados, o que as tornam totalmente
dependentes do salário de uma figura masculina socialmente melhor remunerada.
Entretanto, não nos cabe apenas a atuação reparadora quando
concretizada a violência. Fundamental uma insistente discussão sobre gênero e
classe para que avancemos socialmente no debate, diminuindo, cada vez mais, os
índices de agressão e de feminicídio. Pra isso, projetos de lei como o “Escola
sem Partido” devem ser derrubados, onde, no lugar, devemos ocupar propostas de
educação sexual, grupos de estudo e de debate sobre estereótipos de gênero e
sobre opressões e explorações. É crucial desmitificarmos, em todos os espaços e
a todo tempo, o fantasma que ronda os debates que têm potencial de arruinar
essa sociedade capitalista falida e seus tentáculos do machismo, do racismo, da
LGBTIfobia, etc.
Nesse
sentido, quanto à ruptura do todo posto e o objeto de nossa luta organicamente
travada diariamente:
É imprescindível o reforço permanente da
dimensão histórica da dominação masculina para que se compreenda e se
dimensione adequadamente o patriarcado. (...) A dominação-exploração constitui
um único fenômeno, apresentando duas faces. Desta sorte, a base econômica do
patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação salarial das
trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em sua marginalização de
importantes papeis econômicos e político-deliberativo, mas também no controle
de sua sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva. Seja para
induzir as mulheres a ter grande número de filhos, seja para convencê-las a
controlar a quantidade de nascimentos e o espaço de tempo entre os filhos, o
controle está sempre em mãos masculinas, embora elementos femininos possam
intermediar e mesmo implementar estes projetos. (...) Não basta ampliar o campo
de atuação das mulheres. Em outras palavras, não basta que uma parte das
mulheres ocupe posições econômicas, políticas, religiosas, etc.,
tradicionalmente reservadas aos homens. Como já se afirmou, qualquer que seja a
profundidade da dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens, a
natureza do patriarcado continua a mesma. A contradição não encontra solução
neste regime. Ela admite a superação, o que exige transformações radicais no
sentido da preservação das diferenças e da eliminação das desigualdades, pelas
quais é responsável a sociedade (SAFFIOTI, 2011, p. 105-106).
Para isso, nós do Coletivo Feminista
Classista Ana Montenegro não nos iludimos com as esferas legislativa e
judiciária, mesmo reconhecendo algumas contribuições como válidas e essenciais
para a luta e a instrumentalização cotidiana. Denunciamos diariamente as
violências de classe e de gênero, incluindo as acometidas pelo Estado quando
negligente e omisso às demandas do movimento feminista. Reafirmamos a
necessidade de fazermos resgates teóricos que nos contemplam enquanto mulheres
da classe trabalhadora, a fim de avançarmos no debate e erradicarmos, de vez,
junto à ruptura radical da sociedade capitalista, a forma mais primária de
submissão feminina: a violência. Para este dia 10 de outubro, defendemos,
também, o fim da Polícia Militar, a ampliação da rede de atendimento às
mulheres em situação de violência, bem como a reestruturação desmilitarizada
das Delegacias de Defesa da Mulher.