quinta-feira, 27 de setembro de 2018



CAPITALISMO E PROSTITUIÇÃO 

A prostituição é uma das mais antigas profissões exercida, majoritariamente, por mulheres. Na sociedade patriarcal, a mulher desempenha trabalhos do cuidado, sexual e doméstico – e o advento do capitalismo não mudou este cenário. As mulheres, na divisão sexual do trabalho, são destinadas a desempenhar algum desses ofícios ou, até mesmo, todos eles. Aqui iremos discutir o trabalho sexual desempenhado pelas profissionais do sexo, mais especificamente o retrato das atrizes pornôs.

A partir de 2002, a Classificação Brasileira de Ocupação – CBO passou a regulamentar a existência das profissionais do sexo, o que significa que, no Brasil, a prostituição não é crime, porém a dita cafetinagem é (artigo 227 e seguintes, do Código Penal). No entanto, não há nenhuma normatização dos direitos trabalhistas para tais profissionais, mas em tentativa, no ano de 2012, o Deputado Federal Jean Wyllys, do PSOL, formulou o Projeto de Lei nº 4.211/2012, conhecido como PL Gabriela Leite, que ainda hoje tramita como uma iniciativa para a regulamentação da profissão, sendo, no entanto, muito criticado por várias militantes da categoria. Mesmo assim, considera-se referida experiência legislativa como um passo importante para a discussão sobre a regulamentação ou não da profissão.

Pode-se afirmar que, de forma geral, a prostituição, quando em discussão, é abordada mais no campo da moral do que na seara dos direitos trabalhistas. Porém, os debates morais fogem ao que é essencial: se a regulação dessa profissão é possibilidade de melhora nas condições de trabalho e ao acesso aos direitos sociais negados historicamente à categoria. Isso faz com que as profissionais do sexo sejam sempre marginalizadas e lançadas à própria sorte. Vale frisar que, o interessante, é que nesse debate da normatização, as profissionais são consideradas, simultaneamente, de um lado vítimas e, do outro, pervertidas:

Não faço aqui uma defesa cega, festiva e alegórica da prostituição, mesmo porque é uma atividade que existe e resiste há milênios, apesar de todo o estigma, da repressão e das violências sofridas pelas pessoas que a exercem (em especial as mulheres), parece não precisar de defesa alguma, para seguir existindo. Ainda que precise se reivindicar constantemente para não desaparecer de vez. A prostituição, se não pode ser considerada trabalho como outro qualquer - definição que apagaria suas especificidades e questões, não apenas laborais, mas também uma série de tabus, estigmas e opressões ligadas a sexualidade humana, em especial feminina -, tem sido um trabalho possível para um número imenso de pessoas (Putafeminista, Monique Prada, 2018, p.60-59).

Monique Prada – autora acima citada – é uma profissional do sexo que não se coloca como vítima, mas também não romantiza a profissão. Ela defende a prostituição como um trabalho com altos e baixos como qualquer outro, não sendo as profissionais do sexo, necessariamente, vítimas a serem resgatadas da condição de abuso e exploração, o que nos sugere pensar a prostituição por outros ângulos que fogem ao debate moral e assistencialista – ângulos estes que, por si só, acabam por gerar uma cortina de fumaça em torno do tema.

Ainda assim, enquanto persiste a discussão sobre a prostituição ser ou não ser considerada trabalho, suas nuances e pormenores, a indústria do sexo continua existindo e, diga-se de passagem, “vai muito bem, obrigada”. Neste sentido, iremos tratar de forma bem sucinta, um ramo específico da prostituição: a produção de vídeos pornôs e a chamada “uberização” da prostituição.

As relações sociais existentes são afetadas pelo desenvolvimento das forças produtivas (técnicas, tecnologia, maquinários, etc). Ambas são responsáveis pela formação da vida social e de como essa vida é produzida historicamente. A relação entre elas – relações sociais e forças produtivas – não se desenvolve no mesmo ritmo, no entanto estão intrinsecamente dependentes. Em outras palavras, o sentido social que terá determinada atividade laboral e como ela será exercida em seu tempo histórico dependerá do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais coexistentes.

Neste sentido, em termos de produção social da vida quanto ao tema aqui tratado, até o final da década de 1990, o que tínhamos de sexo “virtual” eram os vídeos pornôs produzidos pela indústria do sexo e, de modo geral, financiada pela máfia midiática. A produção do vídeo pornô envolvia uma gama de trabalhadores e trabalhadoras que desenvolviam várias atividades para colocar as filmagens nas prateleiras das locadoras sob acesso dos clientes adultos – em sua maioria homens. Ter uma câmera de vídeo e sustentar uma estrutura para a produção de um filme não era, na época, tarefa fácil - até mesmo para a pirataria.

Com a chegada do DVD nos anos 2000, a pirataria ficou mais simples e acessível, o que afetou diretamente a indústria do sexo. De acordo com o documentário “Pornocracy” - produzido em 2017 por uma ex-atriz pornô e disponível na Netflix -, essa indústria do sexo passou, progressivamente, a não ser tão rentável, exigindo mudanças na relação das produtoras com as atrizes e atores e no papel dos distribuidores e consumidores.

Porém, o advento da internet colocou em xeque a indústria de sexo e o papel das produtoras de vídeos pornôs. Com acesso livre e gratuito a centenas de vídeos e sem restrições para o consumidor, as produtoras tiveram que baratear excessivamente seus gastos com produção. Nesta toada, muitas empresas do ramo perderam espaço no mercado chegando à falência, o que causou impacto direto nas profissionais do sexo. Antes deste fenômeno uma atriz pornô tinha rendimentos consideravelmente altos dentro desta categoria profissional, exemplo disso é o da famosa atriz pornô Cicciolina. Vale pontuar que, apesar da sociedade aceitar essa existência, ela reduz as profissionais à guetos.

A partir de 2006, portanto, os vídeos pornôs passaram a ser um dos itens mais procurados e acessados na “web”. Surgiram vários “tubes” com disponibilização de conteúdos para adultos, porém com acesso irrestrito e sem controle, tais como: Youporn, Xtube, Pornhub, Red tube, etc. Com a popularização da internet e o desenvolvimento das tecnologias da informação, a indústria do sexo passou a não visar mais a produção e a distribuição de vídeos pornôs, como na era do VHS e do DVD, mas passou, sim, ir à procura de fluxo de dados. Essa nova realidade gerou um novo papel para o consumidor, que deixou de ser simplesmente um espectador para se tornar um ator ativo na geração de lucro para a indústria. As atrizes perderam ainda mais valor nesse mercado, pois a partir de então vídeos gratuitos e com acesso irrestrito transmitem suas cenas, sem o menor controle das mesmas, acabando com o mistério e o suposto “glamour”, defendido por algumas, que existia em torno da profissão.

Em 2008, no auge de uma das mais impactantes crises econômicas, os vários “tubes” são comprados por um grande empresário chamado Fabian Thylmann, que passa a ser o seu único dono e a controlar o fluxo de dados através da MANWIN. Vários “tubes” independentes não conseguiram resistir à concorrência e ao monopólio exercido por Thylmann, chegando à falência. Para se ter uma ideia, o ocorrido narrado é semelhante a uma grande rede de supermercados que chega num pequeno bairro de uma cidade com vários mercadinhos locais que, de uma hora para outra, têm que concorrer com essa grande rede. As consequências são demissões de vários trabalhadores e o fechamento dos mercadinhos. Semelhante fato ocorreu na indústria do sexo com a chegada da MANWIN, afinal, estamos falando da formação potente de monopólio, um movimento inerente do sistema capitalista, como identificou Lenin em sua obra “Imperialismo, a fase superior do capitalismo”.

Em 2013, Fabian Thylmann aliena a MANWIN devido às denúncias de lavagem de dinheiro e transações financeiras escusas, vendendo-a para um grupo de investidores desconhecidos, no qual o documentário “Pornocracy” sugere ter relações com bancos e grupos de WAll Street. A empresa passa a se denominar MINDGEEK.

Devido a esse movimento de concentração do capital proporcionado pelo desenvolvimento das forças produtivas, as atrizes pornôs sofreram massivamente com a precarização. A necessidade constante de baixar os custos de produção fez com que a exploração das profissionais ficasse mais intensa e até mesmo a autoexploração passou a ser uma alternativa. Segundo o documentário, do total das receitas geradas pelas atrizes, 78% destinava-se à MINDGEEK; 22% às produtoras amadoras; e, algo em torno de $1.400,00 às atrizes. Vale constar que essas profissionais, na maioria das vezes, não têm ideia do quanto geram de lucro ao monopólio, além de exercerem pouco controle sobre sua renda.

Segundo o mesmo documentário, para conseguirem sobreviver no mercado, algumas produtoras submetem seus trabalhadores e trabalhadoras à jornadas de trabalho de até 20h por dia para que possam gerar lucros satisfatórios. A MINDGEEK controla todo o fluxo de dados e é a plataforma que hospeda, além dos vídeos, os sites que possuem catálogos de profissionais do sexo à disposição para a realização de “programas” - tudo controlado pela empresa, como se fosse um aplicativo estilo Uber, em que a trabalhadora deverá, ao final, pagar uma porcentagem ao aplicativo para se manter online.

A chamada “uberização” da prostituição afetou, inegavelmente, a produção da indústria audiovisual do pornô. Vale estudar com mais zelo, também - o que não compete ao presente texto – se a precarização do trabalho das atrizes pornôs afetou outras profissionais do ramo, como as profissionais que trabalham nas ruas e boates, por exemplo.

Assim, por mais que nos debrucemos em torno da caracterização da prostituição ser ou não trabalho, ou ainda que busquemos um posicionamento classista a despeito de sermos contra ou a favor da sua regulamentação, o que se pode concluir, por agora, é que a indústria do sexo continua sendo bem rentável e gerando significativos lucros para seus investidores. Tal indústria, atualmente, envolve vários programadores e profissionais da tecnologia da informação, que buscam desenvolver a cada ano novas ferramentas para o sistema, portando-se como um setor da econômica capitalista que tem sua cadeia de produção, de consumo e de trabalhadoras que fazem o capital girar – e, enquanto lucrativa for, não irá deixar de existir.

Por fim, pontua-se que a luta de várias militantes da categoria, como a de Monique Prada, é legítima e está intrinsecamente liga ao combate à exploração do trabalho sexual das mulheres nessa sociedade patriarcal e profundamente desigual. É válido pontuar que nós, do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, ainda estamos em profundo debate e formação acerca do tema, antes de nos posicionarmos historicamente a despeito do assunto. Assim, coube a este texto um papel descritivo e de observação. Mas não nos omitimos: fazemos frente a todas as formas de opressão e exploração, buscando a ruptura com o atual sistema, na luta e no enfrentamento rumo a uma sociedade verdadeiramente e humanamente emancipada para todos e todas - e para as diversas categorias de trabalho subjugadas pelo capital.


quarta-feira, 19 de setembro de 2018




Gênero e seus sentidos no parto: violência obstétrica como expressão da violência contra as mulheres.


Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar a forma de nascer.

Michel Odent[1]


Um dos grandes equívocos que se comete quando falamos sobre violência é tentar defini-la de forma a-histórica, atemporal e descolada de qualquer processo cultural no qual ela está inserida. Se cairmos na armadilha de definir violência como um conceito fechado em si, ignoraremos a obviedade das mudanças de comportamento ocorridas ao longo do processo histórico das civilizações, bem como ignoraremos as transformações socialmente construídas.

A análise do fenômeno da violência deve ser feita a partir do reconhecimento de sua complexidade, abarcando, entre outras coisas, a existência de múltiplas expressões da violência; os diferentes níveis de significação atribuídos a ela ao longo do processo de desenvolvimento da humanidade; e, os seus diversos efeitos históricos. Logo, a violência é determinada por valores sociais, políticos e morais de uma sociedade.

Neste sentido, apontamos que o fenômeno da violência contra as mulheres é algo antigo e se faz presente nas diferentes sociedades, perpassando barreiras de classe social, raça, etnia, escolaridade, religião, nacionalidade, orientação sexual, etc, ainda que recaia com mais força sobre algumas mulheres.

A violência obstétrica, em específico, se insere no interior do debate mais amplo sobre a violência contra as mulheres. Nos últimos anos, a violência obstétrica vem se constituindo como um campo temático que merece atenção.

Vale pontuar, para melhor compreensão do debate, que o parto e o nascimento de um filho são eventos marcantes na vida de uma mulher. Infelizmente, muitas vezes são relembrados como uma experiência traumática, na qual a mãe se sentiu agredida, desrespeitada e violentada por aqueles que deveriam lhe prestar assistência. A dor do parto, no Brasil, muitas vezes é relatada como a dor da solidão, da humilhação, da agressão, com práticas institucionais e dos profissionais de saúde que criam ou reforçam sentimentos de incapacidade, inadequação e impotência da mulher e de seu corpo (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012).

No Brasil o cenário relativo ao parto é aterrorizante. Nosso país é o líder mundial em realização de cesáreas. De acordo com dados da pesquisa[2] “Nascer no Brasil – inquérito Nacional sobre o parto e nascimento”, divulgada no ano de 2012 pela Fiocruz, no Brasil a taxa de cesarianas atinge a percentagem de 52% em todo território nacional. Sendo que 46% destes partos são realizados no setor público e 88% no setor privado. O índice recomendado pela Organização Mundial de Saúde - , pasmem, é tão somente de até 15%. Nota-se que o parto normal com conotação violenta é propagado insistentemente para vender o parto cesáreo.

Ainda, no parto normal, a mulher poderá ser exposta a inúmeras situações de violência obstétrica que deixam marcas dificilmente cicatrizáveis. Dentre as principias situações de violência obstétrica, destacamos (Sauaia e Serra, 2016):

·Episiotomia: procedimento cirúrgico realizado por médicos para aumentar a abertura do canal vaginal com uma incisão na vulva, cortando a entrada da vagina com tesoura ou bisturi. Tal procedimento pode gerar incontinência urinária, fecal, dor nas relações sexuais, risco de infecção e laceração perineal;

·Manobra de Kristeller: manobra usada com a finalidade de acelerar a expulsão do feto. Realizada na parte superior do útero, durante as contrações visando empurrar o nascituro em direção a pelve. Pode-se utilizar as mãos, braços, antebraço, joelho e em casos mais extremos subir em cima do abdômen da parturiente para “facilitar” a expulsão do feto;

·Ocitocina Artificial: hormônio sintético utilizado para acelerar o trabalho de parto. Se utilizado incorretamente pode ocasionar dor e sofrimento desnecessário para mãe e bebê, causando o aumento da frequência cardíaca da parturiente, podendo também, ocasionar a falta de oxigenação e dando cerebrais ao bebê;

·Cesáreas Eletivas: procedimento cirúrgico realizado sem necessidade clínica, normalmente agendada para atender conveniências médicas. Aqui não se respeita o início do trabalho de parto por contrações, ou seja, não se respeita o “tempo” certo para o nascimento.

·Proibição do Acompanhante: descumprimento da Lei nº 11.108/2005 que dispõe sobre a obrigatoriedade em permitir a presença, junto a parturiente, de um acompanhante durante todo o trabalho pré-parto, parto e pós-parto.

·Violência psicológica: Ações, palavras e comportamentos por parte dos profissionais de saúde que reproduzem a dominação, desigualdade e discriminação nas relações sociais. Exemplos: a) privação de informações à parturiente acerca dos procedimentos realizados; b) realização de comentários ofensivos, insultuosos, discriminatórios, humilhantes ou vexatórios; c) tratar a parturiente de forma grosseira, agressiva, não empática e zombeteira; d) expor a parturiente a situações de medo, abandono, inferioridade ou insegurança; e) recriminação pelos comportamentos da parturiente, proibindo-a de expressar suas dores e/ou emoções; f) procrastinação do contato entre a mãe e o neonato; e, g) recriminar a parturiente por qualquer característica ou ato físico, tais como: altura, peso, orientação sexual, raça, pelos, evacuação, estrias, dentre outras práticas amplamente condenadas pela OMS.

·Violência Obstétrica e o recorte racial: paira sob os profissionais da saúde o mito relativo a força e resistência a dor da mulher negra. Sendo assim, acreditam que as mulheres negras podem esperar por mais tempo para receber atendimento de qualidade e humanizado. Dados do dossiê[3] “Violência contra as mulheres”, apontam que 53,6% das vítimas de mortalidade materna são mulheres negras; 65,9% das mulheres negras foram vítimas de violência obstétrica.

Isto posto, salientamos que, nos últimos anos, intensos debates acerca da necessidade de um novo olhar sobre o parto e das práticas violentas, permeiam a discussão sobre a violência obstétrica no Brasil. Nosso país não tem uma definição jurídica específica a esse respeito, no entanto, movimentos feministas, movimentos de mulheres e organizações de defesa da mulher recorrem à legislação Venezuelana para conceituar esse tipo de violência.

A “Lei Orgânica sobre os direitos das mulheres a uma vida livre de violência”, aprovada em 25 de novembro de 2006, pela Assembleia Nacional da República Bolivariana da Venezuela, traz 19 tipos de violência à mulher, classificando e tipificando a violência obstétrica em seu artigo 15. Eis a seguinte definição:

Se entiende por violencia obstétrica la apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres por personal de salud, que se expresa en un trato deshumanizador, en un abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales, trayendo consigo pérdida de autonomía y capacidad de decidir libremente sobre sus cuerpos y sexualidad, impactando negativamente en la calidad de vida de las mujeres. (Lei Orgânica sobre o direito das mulheres a uma vida livre de violência – Venezuela, 2007).

O tratamento desumanizado conferido às mulheres no parto retrai sua capacidade natural de parir e, como resultado, causa uma compreensão de que os corpos femininos não são aptos para suportar naturalmente a parturição, problematizando esse processo a ponto de serem compreendidas como necessárias as diversas interferências médicas no corpo feminino (Sousa, 2015).

Diante o todo exposto, vale demarcar que o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro compreende que a Violência Obstétrica também se mostra como mais uma forma de reprodução do machismo e da dominação das mulheres. Essa forma de violência ainda tem grande dificuldade de ser reconhecida como tal, já que é legitimada a partir de uma ciência que carrega grande prestígio social devido à sua funcionalidade para o Capital - a medicina - e devido à naturalidade em que é vista toda forma de violência patriarcal. No Brasil não existem leis que tipifiquem e reconheçam a violência obstétrica, mesmo existindo um forte movimento dentro do campo das lutas feministas que vem atuando contra essa forma de maus tratos a todas às mulheres, o que dificulta os avanços da luta.

A luta contra a violência obstétrica perpassa pela luta pela autonomia da mulher, que deve ser protagonista no seu parto. Deve ter acesso às evidências científicas mais novas para permitir sua livre escolha dos procedimentos e técnicas que serão utilizados. Além da luta por um sistema único e universal de saúde, na qual a saúde não seja tratada como mercadoria, mas como um direito de todo ser humano e que disponibilize recursos e técnicas mais avançadas para o cuidado à saúde da mulher, especialmente da mulher de nossa classe, ou seja, da mulher trabalhadora (Resoluções do Coletivo Ana Montenegro, 2015).


[1] Filme: O Renascimento do Parto - Direção: Eduardo Chauvet. Brasil, 2013. [2] Fonte: http://www6.ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/principais-resultados2/. [3] Fonte: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/violencia/violencias/violencia-e-racismo/.
SOUSA, Valéria. Violência obstétrica: nota técnica considerações sobre a violação de direitos humanos das mulheres no parto, puerpério e abortamento. São Paulo: Artemis, 2015.
RESOLUÇÕES - I Encontro Nacional do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro. São Paulo, 2015.

domingo, 16 de setembro de 2018


Nota contra o desmonte de serviços de proteção a mulheres vítimas de violência!!!



segunda-feira, 10 de setembro de 2018



Mulher e o descaso da saúde pública


O Sistema Único de Saúde - SUS foi legalmente instituído em 1988, através da Constituição Federal vigente, e regulamentado apenas dois anos mais tarde, por meio da Lei nº 8.080/1990, propondo o direito à saúde para todos e todas como uma necessidade básica e inegociável da população. Dentre seus princípios doutrinários, foram elencados os da universalidade, equidade e integralidade, apesar de os entendermos como inalcançáveis dentro de uma sociedade capitalista. Mas, ainda assim, o SUS se faz, atualmente, como sistema necessário dentro das desigualdades sociais evidentes entre classes.

Especificamente no que assola as mulheres trabalhadoras e a maternidade, cumpre destacar que, no Brasil, não há tipo penal para o crime de violência obstétrica, ainda que 1 a cada 4 mulheres morram no país por tal motivo. Além disso, a violência na saúde se arrasta, dia após dia, com o surgimento de práticas que reafirmam a sujeição da mulher a péssimas condições de tratamento. Uma das práticas ainda comum é a chamada Episiotomia, que consiste em um corte cirúrgico de, aproximadamente, seis centímetros, realizado na área muscular entre a vagina e o ânus, ampliando o canal do parto para facilitar a saída do bebê. Esse procedimento é feito em 53,5% dos partos brasileiros, descumprindo a recomendação fornecida pela Organização Mundial da Saúde - OMS para que sua realização ocorra em apenas 10% dos casos, uma vez não apresentar indicações nem benefícios às mulheres. Existem, também, outras práticas comuns de violência, como, por exemplo, a privação de alimentos; repetitivos exames de toque; manobra de Kriteller; posição obrigatória de litotomia; entre outros. Todas estas práticas nós denunciamos nesta oportunidade!

Para além, insta apontar que, ainda no Brasil, cerca de 46% dos partos no setor público são por cesáreas, mesmo com a OMS indicando que tal execução ocorra em uma porcentagem mínima de 10 a 15%. Ademais, cumpre ressaltar que a mulher negra é a que mais sofre violência obstétrica no país, recebendo, por exemplo, quantidade menor ou nula de anestesia. Ainda, é possível nos depararmos com os dados lançados em 2014 pelo Ministério da Saúde que apontam que 60% das vítimas de mortalidade materna no Brasil são negras. Por fim, enquanto 46,2% das mulheres brancas têm acompanhamento médico e familiar durante a maternidade e o parto, somente 27% das mulheres negras usufrui desta realidade.

Por conseguinte, no Brasil, há, por ano, média de um milhão de abortos ilegais, o que resulta o ranking de ser esta a quinta causa de mortalidade materna no país. Longe de esgotar o tema, é imprescindível pontuar que o aborto clandestino é um dos maiores problemas de saúde pública, afetando principalmente mulheres negras e pobres que morrem duas vezes mais do que as mulheres brancas e de classes mais elevadas. Portanto, é também uma violência contra a mulher a criminalização do aborto, ao tirar nossa autonomia e os nossos direitos à saúde e à reprodução.

Como complemento, a Lei nº 10.778/2003 obriga que as redes pública e privada de saúde denunciem ao Ministério responsável os casos de violência obstétrica contra a mulher. Porém, dentro do sistema patriarcal e capitalista, cujo auge do descaso à nossa classe é atingido, tal observação nem sempre se efetiva, desmobilizando este instrumento de denúncia.

Ao que tange a saúde mental, 74% dos consumidores de remédios psíquicos são mulheres. Especificamente em mulheres abusadas sexualmente ou psicologicamente, tem se observado, com mais frequência e intensidade, casos de transtornos e abusos de substâncias. Além do estereótipo e da padronização de beleza, os agravos à saúde reprodutiva (exemplo: infertilidade, HIV, entre outros) também têm sido alguns dos fatores de risco que culminam em transtornos mentais.

Não se pode deixar de pontuar que as múltiplas jornadas de trabalho e a violência sistemática (desigualdade, discriminação, machismo) afetam negativamente a saúde mental das mulheres. As mulheres transexuais, por sua vez, são alvos de constante desrespeito e preconceito que as levam a resistir a tratamentos médicos por latente medo de serem revitimizadas, maltratadas e mal compreendidas.

Portanto, é possível afirmar que as políticas públicas médicas não contemplam todas as necessidades da mulher trabalhadora de modo a realmente garantir sua saúde. Como exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS. Apesar de ser público e importante por promover a saúde das camadas mais necessitadas da população, os profissionais do CAPS tendem a utilizar métodos majoritariamente medicalizantes, o que, por vezes, beneficia mais os interesses mercadológicos da indústria farmacêutica do que a saúde propriamente dita, não se perfazendo como processo social e humanitário.

Em conclusão, é válido relembrar e destacar que a mulher, desde a origem da propriedade privada, como aponta Engels, tornou-se ser social a serviço da hereditariedade e perpetuação da mesma, o que ainda perdura ao longo da história e do capitalismo – mesmo com as tentativas frustradas de tentar humanizar este sistema com direitos humanos paliativos e leis garantidoras falhas. Isto ocorre por não haver efetiva preocupação com a saúde da mulher trabalhadora, uma vez que somos consideradas, ainda, em essência, mero instrumento de reprodução à disposição da manutenção da ordem.

O caminho da nossa luta deve ser, portanto, em direção à construção do Poder Popular para que assim possamos ter profissionais humanamente formados e políticas públicas de qualidade, universais, voltadas às trabalhadoras e aos trabalhadores, suprindo suas urgências e demandas biopsicossociais.

Deste modo repetimos: sem feminismo, não há socialismo!

terça-feira, 4 de setembro de 2018



Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres e a Criminalização do Aborto


Dissertar sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é um assunto amplo. Os “Direitos Sexuais e Reprodutivos” compreendem o direito a qualquer pessoa de desfrutar de sua vida sexual sem discriminação quanto à sua orientação sexual; o direito à decisão de todo casal ou indivíduo sobre a reprodução sem coerção ou violência; a criação dos filhos compartilhada igualmente entre homens e mulheres; o acesso a uma saúde pública de qualidade e integral que garanta a saúde sexual e reprodutiva dos indivíduos; o aborto legal, seguro e gratuito; entre outros.

Porém, talvez o direito ao aborto “legal, seguro e gratuito” seja o tema mais polêmico e que mais tem repercutido nacional e internacionalmente. Tal discussão perpassa aspectos morais, legais, religiosos, sociais e culturais que criam um sentimento de impasse em quem busca esclarecimentos sobre o assunto. Apesar disso, quando falamos de políticas públicas em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, especialmente se levarmos em conta que vivemos em um país dito laico, devemos nos atentar aos fatos concretos que envolvem a questão. Quais sejam: 1 em cada 5 mulheres com 40 anos já realizou pelo menos 1 aborto na vida (principal resultado da pesquisa nacional do aborto); em números absolutos, isso representa 10 vezes o sistema prisional brasileiro (que já é o terceiro maior do mundo); 50% das mulheres que realizam o aborto clandestino finalizam-no em hospitais públicos; algumas morrem e muitas sofrem com sequelas, dores e, principalmente, com a violência na assistência em saúde; e, por fim, uma mulher morre a cada 2 dias, no Brasil, em decorrência de abortos clandestinos.

Diante de dados chocantes, constatamos a realidade que muitos insistem em não ver: apesar de proibido, o aborto é uma realidade para a mulher comum brasileira. E é preciso ir mais além: embora tanto as mulheres ricas, quanto as mulheres pobres realizem abortos, as com maior poder aquisitivo, inegavelmente, têm acesso a clínicas e a profissionais que garantem uma maior segurança no procedimento; às que não possuem condições de pagar por aquilo que deveria ser um direito de todas, só lhes restam os métodos mais desesperados, sem qualquer assistência. A criminalização do aborto, assim, reforça uma desigualdade intrínseca à sociedade capitalista e funciona como mais um instrumento de opressão da mulher trabalhadora.

Na legislação atual, o Código Penal prevê o aborto nos casos de risco de vida para a mulher e quando a gravidez oriunda de estupro. Para além, em 2012, em decisão, o Supremo Tribunal Federal - STF autorizou a interrupção da gestação em casos de anencefalia. No entanto, mesmo nos casos previstos em lei, como no caso de vítimas de estupro, a mulher pobre não consegue, facilmente e sem danos psicológicos, realizar o aborto. Isto porque muitas instituições públicas se negam a realizá-lo, e muitas das que realizam-no ainda acreditam ser necessário o registro de um Boletim de Ocorrência, um laudo médico ou alguma outra forma de autorização judicial para o procedimento – mesmo não havendo mais essa obrigatoriedade desde 2005. Nos poucos casos em que a mulher vítima de estupro consegue realizar o aborto legal, o processo se mostra extremamente desumano e degradante, sendo a mulher submetida a verdadeiros inquéritos, acentuando ainda mais o seu sofrimento.

É interessante quando comparamos tudo isso à falta de responsabilização jurídica do homem na gestação e criação de um filho. Segundo dado do Conselho Nacional de Justiça, há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. Enquanto os homens facilmente se esquivam da responsabilidade de criar um filho, a mulher é, de todas as formas, obrigada a manter a gestação – mesmo sendo esta apenas uma expectativa de maternidade – e sofrer todas as repercussões que ela pode lhe trazer.

Diante desse cenário, a descriminalização do aborto é um passo importante em relação à saúde das mulheres e à garantia de sua autonomia, devendo estar aliada, sempre, à luta pelo fim da violência obstétrica, por políticas de difusão de informações em relação à contracepção e ao planejamento familiar, pela criação de creches que atendam às necessidades das mulheres trabalhadoras, etc. Lutar para que as mulheres tenham direito sobre os próprios corpos, mesmo que dentro das limitações impostas pelo capitalismo, é lutar para que diminuamos a hierarquia entre os gêneros, sem deixar de vislumbrar no horizonte o rompimento com esse modelo de sociedade que marginaliza as minorias e lucra com esta disparidade, sendo esse rompimento a única possibilidade de plena emancipação humana.

Pela descriminalização do aborto, com possibilidade de amplo acesso ao aborto legal, seguro e gratuito para as mulheres!