quarta-feira, 19 de setembro de 2018




Gênero e seus sentidos no parto: violência obstétrica como expressão da violência contra as mulheres.


Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar a forma de nascer.

Michel Odent[1]


Um dos grandes equívocos que se comete quando falamos sobre violência é tentar defini-la de forma a-histórica, atemporal e descolada de qualquer processo cultural no qual ela está inserida. Se cairmos na armadilha de definir violência como um conceito fechado em si, ignoraremos a obviedade das mudanças de comportamento ocorridas ao longo do processo histórico das civilizações, bem como ignoraremos as transformações socialmente construídas.

A análise do fenômeno da violência deve ser feita a partir do reconhecimento de sua complexidade, abarcando, entre outras coisas, a existência de múltiplas expressões da violência; os diferentes níveis de significação atribuídos a ela ao longo do processo de desenvolvimento da humanidade; e, os seus diversos efeitos históricos. Logo, a violência é determinada por valores sociais, políticos e morais de uma sociedade.

Neste sentido, apontamos que o fenômeno da violência contra as mulheres é algo antigo e se faz presente nas diferentes sociedades, perpassando barreiras de classe social, raça, etnia, escolaridade, religião, nacionalidade, orientação sexual, etc, ainda que recaia com mais força sobre algumas mulheres.

A violência obstétrica, em específico, se insere no interior do debate mais amplo sobre a violência contra as mulheres. Nos últimos anos, a violência obstétrica vem se constituindo como um campo temático que merece atenção.

Vale pontuar, para melhor compreensão do debate, que o parto e o nascimento de um filho são eventos marcantes na vida de uma mulher. Infelizmente, muitas vezes são relembrados como uma experiência traumática, na qual a mãe se sentiu agredida, desrespeitada e violentada por aqueles que deveriam lhe prestar assistência. A dor do parto, no Brasil, muitas vezes é relatada como a dor da solidão, da humilhação, da agressão, com práticas institucionais e dos profissionais de saúde que criam ou reforçam sentimentos de incapacidade, inadequação e impotência da mulher e de seu corpo (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012).

No Brasil o cenário relativo ao parto é aterrorizante. Nosso país é o líder mundial em realização de cesáreas. De acordo com dados da pesquisa[2] “Nascer no Brasil – inquérito Nacional sobre o parto e nascimento”, divulgada no ano de 2012 pela Fiocruz, no Brasil a taxa de cesarianas atinge a percentagem de 52% em todo território nacional. Sendo que 46% destes partos são realizados no setor público e 88% no setor privado. O índice recomendado pela Organização Mundial de Saúde - , pasmem, é tão somente de até 15%. Nota-se que o parto normal com conotação violenta é propagado insistentemente para vender o parto cesáreo.

Ainda, no parto normal, a mulher poderá ser exposta a inúmeras situações de violência obstétrica que deixam marcas dificilmente cicatrizáveis. Dentre as principias situações de violência obstétrica, destacamos (Sauaia e Serra, 2016):

·Episiotomia: procedimento cirúrgico realizado por médicos para aumentar a abertura do canal vaginal com uma incisão na vulva, cortando a entrada da vagina com tesoura ou bisturi. Tal procedimento pode gerar incontinência urinária, fecal, dor nas relações sexuais, risco de infecção e laceração perineal;

·Manobra de Kristeller: manobra usada com a finalidade de acelerar a expulsão do feto. Realizada na parte superior do útero, durante as contrações visando empurrar o nascituro em direção a pelve. Pode-se utilizar as mãos, braços, antebraço, joelho e em casos mais extremos subir em cima do abdômen da parturiente para “facilitar” a expulsão do feto;

·Ocitocina Artificial: hormônio sintético utilizado para acelerar o trabalho de parto. Se utilizado incorretamente pode ocasionar dor e sofrimento desnecessário para mãe e bebê, causando o aumento da frequência cardíaca da parturiente, podendo também, ocasionar a falta de oxigenação e dando cerebrais ao bebê;

·Cesáreas Eletivas: procedimento cirúrgico realizado sem necessidade clínica, normalmente agendada para atender conveniências médicas. Aqui não se respeita o início do trabalho de parto por contrações, ou seja, não se respeita o “tempo” certo para o nascimento.

·Proibição do Acompanhante: descumprimento da Lei nº 11.108/2005 que dispõe sobre a obrigatoriedade em permitir a presença, junto a parturiente, de um acompanhante durante todo o trabalho pré-parto, parto e pós-parto.

·Violência psicológica: Ações, palavras e comportamentos por parte dos profissionais de saúde que reproduzem a dominação, desigualdade e discriminação nas relações sociais. Exemplos: a) privação de informações à parturiente acerca dos procedimentos realizados; b) realização de comentários ofensivos, insultuosos, discriminatórios, humilhantes ou vexatórios; c) tratar a parturiente de forma grosseira, agressiva, não empática e zombeteira; d) expor a parturiente a situações de medo, abandono, inferioridade ou insegurança; e) recriminação pelos comportamentos da parturiente, proibindo-a de expressar suas dores e/ou emoções; f) procrastinação do contato entre a mãe e o neonato; e, g) recriminar a parturiente por qualquer característica ou ato físico, tais como: altura, peso, orientação sexual, raça, pelos, evacuação, estrias, dentre outras práticas amplamente condenadas pela OMS.

·Violência Obstétrica e o recorte racial: paira sob os profissionais da saúde o mito relativo a força e resistência a dor da mulher negra. Sendo assim, acreditam que as mulheres negras podem esperar por mais tempo para receber atendimento de qualidade e humanizado. Dados do dossiê[3] “Violência contra as mulheres”, apontam que 53,6% das vítimas de mortalidade materna são mulheres negras; 65,9% das mulheres negras foram vítimas de violência obstétrica.

Isto posto, salientamos que, nos últimos anos, intensos debates acerca da necessidade de um novo olhar sobre o parto e das práticas violentas, permeiam a discussão sobre a violência obstétrica no Brasil. Nosso país não tem uma definição jurídica específica a esse respeito, no entanto, movimentos feministas, movimentos de mulheres e organizações de defesa da mulher recorrem à legislação Venezuelana para conceituar esse tipo de violência.

A “Lei Orgânica sobre os direitos das mulheres a uma vida livre de violência”, aprovada em 25 de novembro de 2006, pela Assembleia Nacional da República Bolivariana da Venezuela, traz 19 tipos de violência à mulher, classificando e tipificando a violência obstétrica em seu artigo 15. Eis a seguinte definição:

Se entiende por violencia obstétrica la apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres por personal de salud, que se expresa en un trato deshumanizador, en un abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales, trayendo consigo pérdida de autonomía y capacidad de decidir libremente sobre sus cuerpos y sexualidad, impactando negativamente en la calidad de vida de las mujeres. (Lei Orgânica sobre o direito das mulheres a uma vida livre de violência – Venezuela, 2007).

O tratamento desumanizado conferido às mulheres no parto retrai sua capacidade natural de parir e, como resultado, causa uma compreensão de que os corpos femininos não são aptos para suportar naturalmente a parturição, problematizando esse processo a ponto de serem compreendidas como necessárias as diversas interferências médicas no corpo feminino (Sousa, 2015).

Diante o todo exposto, vale demarcar que o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro compreende que a Violência Obstétrica também se mostra como mais uma forma de reprodução do machismo e da dominação das mulheres. Essa forma de violência ainda tem grande dificuldade de ser reconhecida como tal, já que é legitimada a partir de uma ciência que carrega grande prestígio social devido à sua funcionalidade para o Capital - a medicina - e devido à naturalidade em que é vista toda forma de violência patriarcal. No Brasil não existem leis que tipifiquem e reconheçam a violência obstétrica, mesmo existindo um forte movimento dentro do campo das lutas feministas que vem atuando contra essa forma de maus tratos a todas às mulheres, o que dificulta os avanços da luta.

A luta contra a violência obstétrica perpassa pela luta pela autonomia da mulher, que deve ser protagonista no seu parto. Deve ter acesso às evidências científicas mais novas para permitir sua livre escolha dos procedimentos e técnicas que serão utilizados. Além da luta por um sistema único e universal de saúde, na qual a saúde não seja tratada como mercadoria, mas como um direito de todo ser humano e que disponibilize recursos e técnicas mais avançadas para o cuidado à saúde da mulher, especialmente da mulher de nossa classe, ou seja, da mulher trabalhadora (Resoluções do Coletivo Ana Montenegro, 2015).


[1] Filme: O Renascimento do Parto - Direção: Eduardo Chauvet. Brasil, 2013. [2] Fonte: http://www6.ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/principais-resultados2/. [3] Fonte: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/violencia/violencias/violencia-e-racismo/.
SOUSA, Valéria. Violência obstétrica: nota técnica considerações sobre a violação de direitos humanos das mulheres no parto, puerpério e abortamento. São Paulo: Artemis, 2015.
RESOLUÇÕES - I Encontro Nacional do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro. São Paulo, 2015.

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