segunda-feira, 20 de agosto de 2018




Mulher e saúde mental

A luta pela existência de políticas públicas voltadas para a saúde da mulher, ou seja, desenvolventes de ações a partir de um recorte de gênero,  justifica-se, a princípio, pelas especificidades biológicas do corpo feminino e pelas questões que envolvem a reprodução. Porém, como o gênero se refere a uma construção histórica e social de um conjunto de relações, papeis, atributos, características e crenças que definem o que é ser mulher e homem, a necessidade de tais políticas transcende a biologia e se coloca num contexto de desigualdade, opressão e exploração. Merece destaque, neste contexto, a saúde mental da mulher.
O documento sobre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher descreve as características gerais das condições sociais, culturais e econômicas às quais as mulheres estão submetidas: renda menor, profissões mais desvalorizadas, menor acesso a espaços de decisões políticas e econômicas, violência (sexual, emocional, física, doméstica), sobrecarga de trabalho por conta do trabalho doméstico. Outros aspectos que agravam esta situação de desigualdade são classe social, etnia, idade, orientação sexual e de gênero. O mesmo documento afirma que em virtude de tais condições o sofrimento das mulheres com as consequências de transtornos mentais é maior quando comparado aos homens.
         É evidente, para a medicina, que determinadas condições mentais possuem fundamento orgânico. No entanto, é preciso reconhecer a origem social e econômica de transtornos mentais atualmente muito frequentes, como depressão, ansiedade, longos períodos de angústia bem como os chamados “transtornos mentais comuns” (sintomas como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas), que se caracterizam como incapacitantes. Tudo que afirmarmos a partir de agora vem de estudos científicos sobre saúde mental, gênero e trabalho, listados ao fim do texto. 
Do ponto de vista epidemiológico, desordens como depressão, distimia, ataques de pânico, fobias, transtornos de ansiedade generalizada, transtornos alimentares e afetivos têm prevalência maior entre as mulheres enquanto esquizofrenia e distúrbio afetivo bipolar se relacionam mais a outras características (tais como demográfica) do que ao gênero.
Nestes estudos há associação da presença de transtornos mentais com as condições de vida e a estrutura ocupacional, ou seja, com as condições de trabalho cada vez mais desumanizadoras do capitalismo. Dentro deste contexto, a sociedade reserva para a mulher um local especificamente adoecedor.
         A relação mais óbvia a ser feita envolve a sobrecarga de trabalho em virtude de ser a mulher, ainda, o membro da família considerado principal responsável pelas tarefas domésticas. Porém, para além disso, há pesquisas que analisam o potencial adoecedor do trabalho doméstico em si. As razões são monotonia, repetitividade, desvalorização e demandas dos papéis sociais aos quais a mulher deve atender. A realização cotidiana deste trabalho pode levar ao desenvolvimento de vários tipos de sofrimento psíquico.
         Mulheres que apresentam sobrecarga de trabalho (associação entre trabalho doméstico e profissional extra doméstico) tendem a apresentar aumento de sintomas de depressão. Os transtornos mentais comuns tendem a ser maiores entre aquelas mulheres que não recebem nenhum tipo de auxílio na realização de tarefas domésticas no interior da família. Este quadro se complica com a existência e número de filhos: à medida que aumenta o número de filhos, aumenta a prevalência dos transtornos mentais comuns.
         Há ainda um elemento importante que associa a saúde mental e o trabalho doméstico: a distribuição de tempo entre as muitas tarefas a serem, cotidianamente, realizadas, sendo que mulheres trabalhadoras experimentam conflitos sobre gestão de tempo de forma mais dramática. O tempo destinado a atividades prazerosas e ao cuidado consigo próprio é essencial para a manutenção da saúde mental. Em virtude da sobrecarga de trabalho, este tempo é escasso para as mulheres e as atividades prazerosas acabam adquirindo caráter menos relevante e entram no fim de uma lista que dá prioridade às obrigações. Talvez nem seja necessário dizer que o caráter hierárquico de tal lista de prioridades é fortemente dominado pelo contexto de produção do imaginário feminino e do papel destinado à mulher como aquela que “cuida do outro”, geralmente, em caráter de abnegação. 
        A  intensificação da precarização do trabalho que tem levado à informalidade e ao desemprego afetam mais intensamente as mulheres, levando ao desenvolvimento dos transtornos mentais. Em um estudo conduzido em Olinda em 2000, enquanto 54% das trabalhadoras informais apresentavam ansiedade e depressão, apenas 19% dos homens sofriam com a informalidade. Para os homens o trabalho informal significava o engajamento nas atividades de encanador ou pedreiro, o que exigia uma certa qualificação e não se identificava com a situação do trabalho doméstico de invisibilidade, carga adicional, monotonia, oportunidade limitada e não reconhecida do uso das capacidades da mulher.
         A ideia - construída historicamente - da mulher como maternal e cuidadora se expressa na realidade sobre a saúde mental de uma forma peculiar, visto que são elas as responsáveis pelos cuidados informais com pacientes de transtornos mentais. Neste sentido, há situações em que as cuidadoras enxergam quem cuidam como o centro de suas vidas, de quem não conseguem se perceber separadas. Ou então apresentam dificuldades em dividir a realização dessa tarefa com outras pessoas. Soma-se a isto a condição financeira desfavorável de boa parte das famílias estudadas, terreno propício para que a própria cuidadora desenvolva sintomas de transtornos psíquicos. De fato, algumas pesquisas afirmam presença de depressão e uso de ansiolíticos entre cuidadoras, tornando claro que elas próprias necessitam de cuidados.
         Quando a mulher adoece mentalmente a família é muito mais afetada. Por ser ela a organizadora das ações do grupo familiar e, principalmente, da vida dos filhos, estes comumente deixam de ir à escola, ao médico e ficam sem assistência para suas necessidades básicas. Uma pesquisa de 2003 afirma que mesmo portadora de doença mental, a mulher tende a manter a execução de determinadas tarefas familiares, ainda que esteja passando por crises. Além disso, é comum que a mulher com transtornos mentais seja abandonada pelo marido enquanto em casos em que o homem adoece, a esposa permanece ao seu lado.
         Um dado interessante evidencia que mulheres internadas em sofrimento psíquico na atualidade têm em comum com mulheres internadas mais de um século atrás o fato de não seguirem o que se espera socialmente delas, isto é, o que é considerado o “curso natural da vida”: o exercício do papel de esposa e de mãe. Isso pode indicar o quanto as pressões sociais a respeito dos papeis de gênero podem afetar a saúde mental de mulheres.
Um estudo de 1995 lista as seguintes causas para a internação de mulheres em sofrimento mental: depressão pós-parto, agressividade, tentativa de suicídio e homicídio, dores de cabeça fortes desde a primeira menstruação e epilepsia, desmaios e insônia decorrentes do período menstrual. O pano de fundo destas ocorrências envolvia violência sofrida (estupro ou espancamento) e crises de depressão pós-parto. A culpa por não ser capaz de suportar a miséria, a criação dos filhos e a conduta violenta do marido estava presente em muitos dos casos.
 Em conclusão, a análise dos dados expostos acima evidencia a urgência da necessidade de se repensar Políticas Públicas voltadas à saúde das mulheres trabalhadoras. Mas, além disso, evidenciam a urgência de repensarmos também o papel e a condição social da mulher, que no capitalismo sempre foram subalternos. A contradição, criada na Era Moderna, entre os trabalho dentro e fora do lar é, além de um fator de adoecimento físico e mental para as mulheres, limitante para seu crescimento individual e coletivo. Sendo assim, é urgente que o trabalho doméstico seja coletivizado e garantido pelo Estado, com a criação de estabelecimentos que assistam às demandas da classe trabalhadora, como creches, escolas infantis e restaurantes populares. Nesse contexto, também faz-se necessária a defesa de uma Saúde Pública de qualidade para os trabalhadores e trabalhadoras, e aqui falamos da luta contra o sucateamento do SUS, que, como já exposto acima, poderá afetar ainda mais as mulheres de nossa classe em suas necessidades.

PEGORARO, R. F.; CALDANA, R. H. L. Mulheres, loucura e cuidado: a condição da mulher na provisão e demanda por cuidados em saúde mental. Saúde e Sociedade. São Paulo, v.17, n.2, p.82-94, 2008.
ARAÚJO, T. M.; PINHO, P. S.; ALMEIDA, M. G. Prevalência de transtornos mentais comuns em mulheres e sua relação com as características sociodemográficas e o trabalho doméstico. Rev. Bras. Saúde Matern. Infant., Recife, 5 (3): 337-348, jul. / set., 2005
LUDERMIR, A. B. Inserção produtiva, gênero e saúde mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):647-659, jul-set, 2000


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