quarta-feira, 2 de janeiro de 2019



Ressaca

Os cartazes, as bandeiras, a voz rouca, as luzes que iam de amarelo a azul, tudo zunindo.
O copo ainda sujo em sua frente, com resto de cerveja e batom.
Garrafas em cima da mesa.
Diversas. A vontade de pedir mais uma e o riso frouxo.
As memórias, como um rio turvo. A água em seus olhos, que abriram e fecharam com muita força.
De repente, levantou e cantou uma canção que sua avó ensinou:
"Sempre no coração, haja o que houver, a fome de um dia poder, comer a carne dessa mulher. Veja meu patrão como pode ser bom, você trabalharia no sol, e eu tomando banho de mar....".
Subiu na mesa e discursou.
Inflamada.
De relance se viu no caminhão de som, a memória de todos os meninos que habitam dentro dela e são cheios de fome, doçura, e de raiva.
Raiva.
Raiva.
Viver é coisa séria, não é?
Na esquina, um morador em situação de rua gritava alto.
Profecias, ela pensou.
"Luto para viver, vivo para morrer, enquanto minha morte não vem eu vivo de brigar contra o rei..."
Engoliu a seco.
Fosse fazer poesia essa hora diria que não pode existir lucidez nesse mundo. Mas existe.
E dói.
Maria não conseguia enxergar muito bem quem estava à sua frente, mas sentia uma paixão enorme, junto a uma tristeza que a fazia gargalhar.
Tudo turvo.
Quantas, quantas derrotas até uma vitória?
A bebida traz coragem mesmo ou isso nasce encruada na gente?
Sua pele eriçava com o vento, e sentiu desejo. Mas amanhecia e alguém a avisou que precisava tomar café. O bar estava fechando.
"Hoje tem lei seca".
Bateu na mesa, engoliu o café sem açúcar e sumiu virando a esquina.
Viver é tomar partido.
Boa ressaca.

Por Maria Fernanda Portolani

Na foto:  Marielle Franco, sempre viva em todas nós.

Para ler ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=k9-6p11klE0

Nenhum comentário:

Postar um comentário